domingo, 12 de junho de 2011

O Poder dos Mitos

Actualmente, não estamos sensibilizados para a literatura do espírito. Vivemos virados para a especulação da nossa aldeia global, os casos bombásticos e toda a adrenalina com que nos habituamos a conviver. Esquecemos a magnífica herança humana que recebemos de Platão, Buda, Goethe e outros, que falam de valores eternos e que dão o real sentido à vida.

Antigamente as literaturas grega e latina e a Bíblia costumavam fazer parte da educação de toda gente. Tendo sido suprimidas, em prol de uma educação de acordo com uma sociedade industrial, onde o máximo que se exige é a disciplina para um mercado de trabalho mecanicista, toda uma tradição de informação mitológica do ocidente se perdeu. Muitas histórias se conservam na mente das pessoas, dando uma certa perspectiva daquilo que acontecia nas suas vidas. Com a perda disso, por causa dos valores pragmáticos de nossa sociedade industrial, perdemos efectivamente algo que faz parte da nossa cultura. Essas informações, provenientes de tempos antigos, têm a ver com os temas que sempre deram sustentação à vida humana, construíram civilizações e formaram religiões através dos séculos, e têm a ver com os profundos problemas interiores, com os profundos mistérios, com os profundos limiares de nossa travessia pela vida, e se não soubermos o que dizem os sinais deixados por outros ao longo do caminho, teremos de produzi-los por conta própria.

Por exemplo, grandes romances podem ser excepcionalmente instrutivos, porque a única maneira de descrever verdadeiramente o ser humano é através de suas imperfeições. O ser humano perfeito é desinteressante. As imperfeições da vida, por serem nossas, é que são apreciáveis. E, quando lança o dardo de sua palavra verdadeira, o escritor fere. Mas o faz com amor. É o que Thomas Mann chamava "ironia erótica", o amor por aquilo que você está matando com a sua palavra cruel. Aquilo que é humano é que é adorável. É por essa razão que algumas pessoas têm dificuldade de amar a Deus; nele não há imperfeição alguma. Podemos sentir reverência, respeito e temor, mas isso não é amor. É o Cristo na cruz, pedindo ao Pai que afaste o seu cálice de sofrimento, e que chora por Lázaro morto, que desperta o nosso amor.
Aquilo que os seres humanos têm em comum revela-se nos mitos. São histórias da nossa vida, da nossa busca da verdade, da busca do sentido de estarmos vivos. Mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana, daquilo que somos capazes de conhecer e experimentar interiormente. O mito é o relato da experiência de vida.
A mente racional, analítica, o lado esquerdo do cérebro ocupa-se do sentido, da razão das coisas. Qual é o sentido de uma flor? Dizem que um dia perguntaram isso a Buda e ele simplesmente colheu uma flor e deu-a ao seu interlocutor. Apenas um homem compreendera o que Buda queria demonstrar. Racionalmente, não fazia sentido esse gesto. Mas podemos fazer a mesma pergunta para algo maior: qual é o sentido do universo? Ou qual o sentido de uma pulga? A única resposta realmente válida está exactamente ali, no existir. Qualquer formulação racional dá-nos uma ideia linear da coisa, mas mata a beleza da coisa em si. Estamos tão empenhados em realizar determinados feitos, com o propósito de atingir objectivos de um outro valor, linear e longe da vibração da vida, que nos esquecemos de que o valor genuíno, o prodígio de estar vivo, é o que de fato conta. É por isso que as grandes questões filosóficas, embora sejam de fundamental importância para todos, acabam sendo a preocupação de apenas uma ínfima minoria da população. Eles esqueceram de que o valor genuíno, o prodígio de estar vivo, é o que de fato conta, e preferem se acomodar aos papeis de uma vida burguesa e adaptada ao sistema capitalista, deixando que outros, actualmente os políticos e os cientistas, tomem as decisões mais complexas por eles. Mas todos já foram crianças curiosas. A curiosidade infantil é a mesma curiosidade do filósofo. Cristo está certo quando fala que só "quem se faz como um destes pequeninos, entrará no Reino dos céus". Bom, e como podemos resgatar um pouco de nosso grande potencial humano? Lendo mitos. Eles ensinam-nos que nos podemos voltar para dentro. Devemos procura-los para começar a entender as suas mensagens. Lendo mitos de outros povos começamos a perceber que alguns enredos são universais. Por exemplo, a lenda do Graal. A busca dos cavaleiros do Rei Arthur pelo Graal representa o caminho espiritual que devemos fazer e que se estende entre pares de opostos, entre o perigo e a bem-aventurança, entre o bem e o mal, pois não há nada de importante na vida que não exija sacrifícios e algum perigo.
O tema da história do Graal diz que a terra está devastada, e só quando o Graal for reencontrado poderá haver a cura da terra. E o que caracteriza a terra devastada? É a terra em que todos vivem uma vida inautêntica, fazendo o que os outros fazem, fazendo o que são mandados fazer, desprovidos de coragem para uma vida própria. Esquecem-se que são seres únicos, sendo cada indivíduo uma pessoa diferente das demais. A beleza de uma terra rica está exactamente na convivência dos diferentes, não na mistura deles. Se temos um lugar ou uma era em que todos se alienam e fazem a mesma coisa, temos a terra devastada: "Em toda a minha vida nunca fiz o que queria, sempre fiz o que me mandaram fazer".

O Graal torna-se aquilo que é logrado e conscientizado por pessoas que viveram as suas próprias vidas. O Graal representa (simboliza) o receptáculo das realizações das mais altas potencialidades da consciência humana.
O rei que inicialmente cuidava do Graal, por exemplo, era um jovem adorável, mas que, por ainda ser muito jovem e cheio de ansiedades de viver, acabou por tomar atitudes que não se coadunavam com a posição de rei do Graal. Ele partiu do castelo com o grito de guerra "Amor!", o que é próprio da juventude, mas que não se coaduna com a condição de ser rei do Graal. Ele parte do castelo e, quando cavalgava, um muçulmano, um não cristão, surgiu da floresta (a floresta representando o nível desconhecido do nosso psiquismo). Ambos erguem as lanças e atiram-se um contra o outro. A lança do rei Graal mata o pagão, mas a lança do pagão castra o rei Graal.
Isto significa a separação que os padres da igreja fizeram entre matéria e espírito (já que Jesus sempre se referia ao Reino como um campo em que um semeador saiu a semear, ou uma rede atirada ao mar, ou a uma festa de núpcias, ou sobre as aves do céu e os lírios do campo, está claro que esta divisão pré-cartesiana foi fruto da mentalidade patriarcal dos pais da igreja, não do Cristo), entre dinamismo da vida e o reino do espírito, entre a graça natural e a graça sobrenatural, na verdade castrou a natureza. A verdadeira espiritualidade, que resultaria da união entre matéria e espírito, tal como era praticada pelos Druidas, foi morta. O que representava, então, o pagão? Era alguém dos subúrbios do Éden. Era um homem que veio da floresta, ou seja, da natureza mais densa, e na ponta de sua lança estava escrita a palavra "Graal". Isso quer dizer que a natureza aspira ao Graal. A vida espiritual é o buquê, o perfume, o florescimento e a plenitude da vida humana, e não uma virtude sobrenatural imposta a ela. Desse modo, os impulsos da natureza são sagrados e dão autenticidade à vida. Esse é o sentido do Graal: Natureza e espírito anseiam por se encontrar uma ou outro, numa atitude holística. E o Graal, procurado nestas lendas românticas, é a reunião do que tinha sido divido, o seu encontro simboliza a paz que advém da união.
O Graal que é encontrado tornou-se o símbolo de uma vida autêntica, vivida de acordo com a sua própria volição, de acordo com o seu próprio sistema de impulsos, vida que se move entre os pares de opostos, o bem e o mal, a luz e as trevas. Uma das versões da lenda do Graal começa citando um breve poema: "Todo acto traz bons e maus resultados". Todo acto na vida desencadeia pares de opostos em seus resultados. O melhor que devemos fazer é pender em direcção da luz, na direcção da harmonia entre estes pares, e que resulta da compaixão pelo sofrimento, que resulta de compreender o outro. É disso que trata o Graal. É isso o que Buda quis dizer por tomar o caminho do meio. É isso o que significa estar cruxificado entre o bom e o mal ladrão e ainda orar ao Pai...
Selecção, resumo e adaptação do Livro "O Poder do Mito" de Joseph Campbell, feito por Carlos Guimarães - Por que mitos? Por que nos importarmos com eles? O que eles têm a ver com nossas vidas?
(continua)
Postado por Delfina Correia

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